Reforma do ensino médio: mudança ou retrocesso?

É consenso na comunidade educacional a necessidade reformular o ensino médio no Brasil.  Todavia, a forma de construção e o teor dessa mudança exigem acordos e uma ampla pactuação social com os diversos setores sociais e a comunidade escolar, características que não têm norteado o presente processo de reforma apresentada pelo governo brasileiro. Nesse cenário, devemos ficar atentos em relação às justificativas usadas para se decretar uma “reforma”, via medida provisória, bem como desvelar os seus reais sentidos.
O próprio governo anunciou o caos e proclamou a falência da educação pública para melhor justificar a adoção de soluções mágicas e salvacionistas vindas de cima. O discurso predominante ancorou-se na urgência e na inevitabilidade de se mudar o atual quadro dessa etapa da educação.
Na justificativa do governo em torno da urgência da reforma, difundiu-se que a qualidade da educação piorou. Não por acaso que a MP 746 que trata da reforma do ensino médio foi apresentada após a divulgação dos resultados do IDEB 2015, com ênfase dada à queda no rendimento dos estudantes do ensino médio.
Os resultados foram usados como justificativa para aligeirar a discussão sobre a reforma. Assim, a proclamação do caos e a apresentação do ensino médio como uma tragédia nacional pautaram as manchetes que tiveram destaque na mídia na semana em que os resultados do IDEB foram divulgados:

“Não vamos fazer de conta que essa tragédia não existe”
(Mendonça Filho, Ministro da Educação, Site G1, 08/09/2016[1])

“ (...) o modelo faliu, quebrou, não funciona”
(Maria Helena Guimarães, Secretária Executiva do MEC - EBC, 23/09/2016[2])

“O Ensino Médio é o desastre brasileiro, chegamos ao fundo do poço em matemática. Precisamos de uma mudança urgente”.
(Mozart Neves Ramos, Instituto Ayrton Senna, Site G1, 8/9/2016[3])

Tudo indica que se usou a retórica da catástrofe como estratégia política para impor um modelo de reforma como regime de verdade, negando outras possibilidades de construção de mudanças.
Cabe ressaltar que a defesa da reforma passou a ser um clamor que soou bem aos ouvidos, porque indicou a possibilidade de movimento, progresso, inovação, além de ter forte apelo social. Afinal, quem é contra a inovação e o progresso?   A impressão que fica é a de que a reforma do ensino médio no formato apresentado deve ser assumida como um “grito de guerra” a ser defendido por todos, independentemente das diferentes visões de educação e de mundo que fazem parte do jogo democrático.
Ao longo da história da educação brasileira, as inovações educacionais têm sido impostas de cima para baixo. As políticas quase sempre são decididas pela ótica da tecnocracia, envolvendo pequenos grupos, organizações privadas e consultorias especializadas. Logo, dissimula-se uma crença de que a mudança, a renovação é uma iniciativa dos “especialistas iluminados”. Esses costumam se esconder no discurso técnico e científico, com dados e índices que servem para legitimar mudanças que dizem ser em nome de todos, mas que atendem a interesses mesquinhos dos grupos dominantes.
 Esse tipo de reforma,  que ignora os sujeitos da educação, tende a fracassar porque costuma ter os seguintes traços característicos: 1) permite que os professores apenas  “palpitem” e usa a participação como máscara para conseguir o consenso e a adesão aos modelos de reforma que são previamente definidos por pequenos grupos; 2) avalia negativamente a escola, seu currículo e professores, o que facilita a adoção de soluções vindas de cima; 3) desqualifica os professores, com o discurso de que eles não têm preparo e não compreendem as mudanças contemporâneas, desrespeitando assim sua  história, trajetória e identidade; 4) questionam a autonomia docente com vistas a uma maior tutela e controle sobre o seu trabalho; 5) definem a seleção de novos conteúdos como expressão máxima da função da escola ganhando centralidade a reforma curricular que ignora outros aspectos relevantes do processo educativo.
Nesse cenário de reforma pelo alto e que subordina a educação aos interesses exclusivos do mercado, a educação passa a ter como objetivo principal a obsessão por atingir metas, estimulando-se assim um processo educativo centrado na cultura da performance: simulados, rankings, índices, provas e bônus por produtividade que induzem a uma lógica de disputa entre os pares e comparações entre escolas.   As tabelas passam a refletir um modelo de educação baseado em resultados de provas, com critérios de avaliação que se dizem objetivos e generalizáveis, mas que muitas vezes estão descontextualizados da realidade social em que a escola está inserida. A qualidade da educação é reduzida a índices alcançados em testes de rendimento, gerando uma esquizofrenia de valores no interior do processo educativo. Desse modo, as escolas que não têm bons resultados incorporam um sentimento de culpa individualizada pela “queda da qualidade”, sendo vistas como incompetentes pela sociedade por não atingirem as metas previamente estabelecidas pelo poder central.
Como a lógica dessas mudanças visa à diminuição dos gastos com a educação, esse modelo de reforma tende a ignorar outros aspectos importantes do processo educativo: financiamento que garanta uma boa estrutura física para a escola,  acervo de biblioteca, a existência de laboratórios, quadras esportivas adequadas; valorização profissional com plano de carreira atraente;  a relação professor/aluno; o custo aluno-qualidade; a efetivação da gestão democrática; a construção de políticas educacionais pactuadas com as escolas; a política de assistência estudantil visando à permanência e ao êxito escolar; as boas condições de trabalho e a avaliação global das práticas educativas.
A educação é um assunto de interesse público, sendo assim uma verdadeira reforma dever ser fruto de uma construção coletiva com a participação direta dos estudantes, dos educadores e de todos os sujeitos interessados na melhoria da qualidade educacional. Assim sendo, precisamos de uma verdadeira e ampla reforma da educação que considere a complexidade do processo educativo, uma reforma que seja fruto da pactuação social, em que os sujeitos da escola participem ativamente de sua construção. 

Adilson Cesar de Araujo
Doutor em Educação pela FE/UnB




[1] http://g1.globo.com/educacao/noticia/ideb-no-ensino-medio-fica-abaixo-da-meta-nas-escolas-do-brasil.ghtml. Acesso em 19 fev. 17.
[2] http://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2016-09/mec-falencia-do-ensino-medio-impos-urgencia-de-reforma-por-medida. Acesso em 19 fev. 17.
[3] http://g1.globo.com/educacao/noticia/especialistas-alertam-que-ideb-e-insuficiente-para-avaliar-ensino-no-pais.ghtml. Acesso em 19 fev. 17.

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